domingo, julho 06, 2008

Rui Bebiano: historiador ou ideólogo?!...


Estou furioso.

Leitor atento e devotado de Rui Bebiano, inicialmente, no "A Terceira Noite" e, hoje, no "Caminhos da Memória" construi dele a ideia de pessoa rigorosa (a sua biografia no Caminhos da Memória atestam-no), competente, sério e cultor duma certa ética enquanto historiador, ao modo de Heródoto. o pai da História.

Por essa razões, por esse convencimento, quando li o poste que RB publicou a pretexto dum "debate" entre Pierre Nora e Élie Barnavi, judeu nascido em Bucarest, na Roménia, aderi logo à proposta de RB e aceitei o desafio de particpar no debate sobre um tema que me interessa sobremaneira: história e memória e a ética do historiador enquanto cidadão.

Dei, nem tinha razões para que não fosse assim, como boas e rigorosas as citações e as traduções a partir do francês, da responsabilidade de RB.

Aceitei, de caras, sem hesitação, que estavamos perante "duas formas absolutamente opostas de olhar a relação entre memória e história".

Por todas estas razôes dediquei-lhe, ao poste e ao tema do RB, aqui no Aqueduto Livre, longuíssimo poste, com múltiplas, diversificadas referências e citações que me pareceram bastantes para uma primeira etapa do debate,

Ontem, Sábado, dia 5 de Julho comprei a revista "Le Magazine Littéraire", n.º 477 de Juillet-Août de 2008, onde está publicado o "Débat, Élie Barnavi e Pierre Nora, la fin de l´hiostoire?" (chamada de capa).

Li a peça uma, duas, três vezes e fiquei furioso, mesmo muito zangado,para não dizer estupefacto!

E porquê? Por que não encontrei lá nada, mesmo nada, daquilo que o RB sugeriu no seu poste.

Encontrei mesmo frases que o RB traduziu pessimamente, distorcendo-as e alterando-lhes o sentido:GRAVE, muito grave!

O trabalho de alfaiate, de corte e cola, feito por RB com as respostas dos dois eminentes historiadores, para casar uma tese sua, um preconceito seu,uma convicção sua ...inenarrável!

O modo como RB fatia as respostas de Pierre Nora e Élie Barnavi são do dominio, no minimo, da manipulação impúdica, direi mesmo, a roçar uma certa imoralidade!

Estou a exagerar? Vamos ver.

Para demonstrar o que digo, publico, integralmente, o poste de RB e vou atribuir números às frases traduzidas e utilizadas por RB, para, mais facilmente, as poder analisar e criticar:

"O número de Julho-Agosto do Magazine Littéraire transporta consigo, para além de um notável dossiê sobre as conexões entre humor e literatura, a reprodução de uma conversa – «L’Histoire, victime de la mémoire?» – entre o académico Pierre Nora, actual director da revista Débat e autor do incontornável Les Lieux de la Mémoire, e Élie Barnavi, professor da universidade de Tel Aviv e conselheiro científico do Museu da Europa, em Bruxelas. Mais do que a exposição de duas formas absolutamente opostas de olhar a relação entre memória e história, ela serve para ajudar a desmistificar a ideia segundo a qual esta última é um saber frio e unívoco, do qual os valores da subjectividade e da cidadania se devem manter desejavelmente afastados.
Traduzindo os destaques (que sugerem muito bem o tom de toda a conversa a duas vozes):
1/Barnavi: «A História tem sido notificada para se colocar ao serviço da memória. Esta apropriação da História parece-me uma das características mais graves da nossa época.»
2/Nora: «O tempo no qual os positivistas conservavam à distância a história contemporânea parece hoje completamente ultrapassado. Fazer História é fazer história contemporânea.»
3/Barnavi: «Um dos males que corrói a nossa época é a confusão de papéis entre o historiador e o ideólogo.»
4/Nora: «A memória incorpora doravante uma reivindicação particularista, subjectiva e peremptória, quando não terrorista.»
Um debate que é para (e que deve) continuar." Rui Bebiano, in "Os Caminhos da
Memória"

Comecemos pelo principio.

E o principio é o TEMA do próprio debate proposto pela revista:"L'Histoire, victime de la mémoire? Les historiens ont perdu le monopole de l'interprétation du passé. Les interventions de l'État et les revendications identitaires grandissantes sont-elles en train dímposer un nouveau sens à l'Histoire?"

Este é o titulo completo e o TEMA proposto pela revista.

Ainda na introdução, da responsabilidade do jornalista que faz as perguntas e que recolhe as respostas, Alexis Lacroix, encontramos outros tantos subtemas de mor importância para os historiadores e para a historiografia:"La France est-elle toujours la patrie des historiens? Y a-t-il une vie aprés L'école des Annales fondée par Marc Bloch et Lucien Febvre? L'accéleration de l'Histoire, conjuguée aux nouveux usages de la mémoire, est-elle en train de priver l'historiens d'audience et de légitimité? Pourquoi l'État veut-il patrimonialiser les Archives? Pour débattre de ces enjeux d'actualité, Le Magazine Littéraire a imvité deux historiens éminents, l'académecien Pierre Nora, directeur de la revue Débat, et le conseiller scientifique du musée de l'Éurope, Élie Barnavi."

Vamos então às frases "utilizadas" por RB, contrapondo-lhe a frase "completa" em francês e, depois, a minha tradução.:

1/Élie Barnavi:"Une science qui permet de toucher sinon toute la verité, du moins un pan de la verité. Jusqu'à une époque récente, la memoire avait valu surtout comme un matériau de l'historien. Le fait nouveau, c'est que, désormais, la mémoire s'émpare de l'Histoire. Ainsi l'Histoire est elle sommée de se mettre au service de la mémoire. Cette appropriation de l'Histoire par la mémoire me semble l'une des caractéristiques les plus graves de l'époque." "Uma ciência que permite alcançar senão toda a verdade, pelo menos uma fralda da verdade. Até uma época recente, a memória valia como material para o historiador. O facto novo é que, daqui em diante, a memória apoderou-se da História. Assim a História é intimada a se colocar ao serviço da memória. Esta apropriação da História pela memória, parece-me, uma das características mais importantes desta época."

2/Pierre Nora:"Ce qui découle dábord de la politisation de l'Histoire, c'est sa contemporanéisation.Par «contemporanéisatio», j'entends la transformation de l'Histoire en une zone sensible, tributaire des tragédies récents du XXe siécle. L'époque où les positivistes tenaient à distance l'histoire contemporaine, saturée à leur goût d'enjeux passionnels, semble,aujourd'hui révolue. Faire de l'Histoire, c'est faire de l'histoire contemporaine." " O que dimana em principio da politização da história, é a sua «comtemporanização». Por «comtemporanização» eu entendo a transformação da História numa zona sensivel, tributária das tragédias recentes do século XX. A época na qual os positivistas mantinham à distância a história comtemporânea, saturada a seu gosto de paradas/jogadas passionais, parece, hoje em dia, ultrapassado. Fazer a História é fazer história contemporânea."

3/Élie Barnavi: «Le mal qui ronge notre époque, c'est la confusion entre le rôle de l'historien et celui de l'ideólogue.» «O mal que atormenta a nossa época é a confusão entre o papel do historiador e o do ideólogo.»

4/ Pierre Nora: «La mémoire porte désormais une revendication particulariste, subjective et péremptoire, quand elle n'est pas terroriste.» « A memória traz consigo, de ora em diante,uma reinvidicação particularista, subjectiva e peremptória, quando ela não é terrorista.»

Para já está feita a análise e alguma critica.

Quanto às Duas Vozes e às "...duas formas absolutamente opostas de olhar a relação..." só consegui descortinar o seguinte, e cito: "Pierre Nora: "Cela dit, contrairement à vous, je préfere au terme vérité historique, celui de realité. Pour bien souligner que la verité dont il s'agit est à la fois fragile et incertaine, et qu'elle relève d'un champ d'hypothèses."

O amor da verdade, a minha consciência e ainda porque me senti abusado, exigiram-me esta posição e este poste.

José Albergaria

2 comentários:

Rui Bebiano disse...

Algumas breves palavras sobre a crítica que José Albergaria faz a um post no qual procurei chamar a atenção para um artigo e sobretudo para um tema que carece de discussão.

Desde logo – e admito que uma leitura mais exigente colida com tal «ligeireza» – declarei no post que iria traduzir os destaques, da responsabilidade da revista, e não os passos completos da entrevista. Aceito que a opção possa ser discutível, ou contestável. Acontece frequentemente quando se escrevem pequenas notas que funcionam basicamente como notícias.

Depois, dado o seu percurso pessoal, o francês de José Albergaria será sem qualquer dúvida melhor que o meu. Mas nem sempre a transcrição literal – e nos discursos mais teoricizantes tal é particularmente notório – nos aproxima verdadeiramente o sentido do texto. Não sou partidário da «invenção», mas de uma tradução dinâmica capaz de adaptar o traduzido ao sentido que pode ser colhido na língua de destino.

Finalmente, na tradução da última frase por mim feita faltava, de facto, um «é» que é essencial para a sua compreensão e que já corrigi («quando não é terrorista»).

Agradeço a crítica e a atenção.

Rui Bebiano

Rui Bebiano disse...

Para encerrar, ainda o seguinte que por lapso não introduzi no comentário anterior: em qualquer conversa entre pessoas civilizadas, sobretudo quando elas são figuras públicas e o resultado é para ser divulgado, procuram-se pontos de aproximação e de consenso. As leituras muito distintas, no entanto, estão lá.